quarta-feira, 3 de junho de 2009

À ESPERA DE UM LENÇO

“ Cerro os dentes e enterro o cortador bem fundo em uma de minhas unhas. Corto a carne e deixo o sangue brotar. Esfrego o dedo no lenço, dos dois lados, e o devolvo a ela.
“ Aqui está a sua virgindade”, digo.”


As frases acima são de um livro que ando lendo e se chama “O Salão de beleza de Cabul. O mundo secreto das mulheres afegãs”, depoimento de Deborah Rodriguez que viveu histórias intensas num Afeganistão que se reconstruía da guerra.
O trecho trata de uma jovem que na noite de núpcias precisava enganar o marido de que permanecera virgem até ali. Um detalhe que não torna a história mais ou menos chocante é que ela havia sido abusada anos antes por um primo e também noivo que a abandonou depois disto.

E Deborah continua:
“...Ouço a mãe de Roshanna gemendo e chorando. Portas estão batendo...
...vejo que a mãe de Roshanna está chorando de alegria. “Virgem”! ela grita pra mim, triunfante, acenando o lenço manchado com meu sangue. “Virgem”!


Quando li esta história, minha primeira reação foi agradecer a Deus por não habitar num país como este, foi tentar me enganar que por aqui as coisas são diferentes. Mas, com alguns segundos pra pensar e memórias que sempre voltam, sou tristemente obrigada a dizer que as diferenças são mínimas.

É verdade que quando me casar ( se casar) minha família não ficará acampada na porta de meu quarto esperando pelo lenço manchado, e caso ele não se manche o marido não me devolveria, nisso somos diferentes sim.
Mas, a sociedade sempre acampa à espera de outras coisas, satisfações talvez e uma boa desculpa por você ter agido do modo como agiu.


Já passei por fases assim e ainda nem sei se elas já acabaram sinceramente, ouvi coisas que não gostaria de ter ouvido e carreguei adjetivos que certamente não eram meus.
O lenço certamente estaria manchado, mas isso realmente não importa agora, quando despejam todo tipo de escória em seu nome e te fazem acreditar que não se é digna de nada além de um canto escuro e de lágrimas salgadas demais pra te deixar dormir.

Tem sempre alguém acampando e gritando o que acontece do lado de dentro, ainda que tenha tido uma visão distorcida, tem sempre alguém se aliviando do erro e o despejando em outros ombros.

A verdade é que nosso sistema interno, muitas vezes, é o mesmo que o sistema de países extremistas, o que muda é o que está do lado de fora. As mulheres das terras tupiniquins sofrem tanto como as que encobrem todo o corpo. Nós sofremos por dentro e nós pagamos muito caro pelas escolhas que fazemos acreditando que a era é outra e que as coisas são mais modernas agora.

A verdade é que continuamos manchando o lenço umas das outras para nos proteger, continuamos aceitando os adjetivos e esperando que um dia a verdade surja com o sol.

Eu, muito inocentemente e quase burramente, espero não precisar mais chorar num canto escuro por decisões que ficaram no passado, espero não ter que explicar nada aos que esperam por respostas para satisfazer seu ego faminto de auto afirmação.
Quero levantar a minha cabeça, e ali, alta e segura me ver livre das palavras encardidas e da falsa santidade que anda latindo como um cão assustado.

O caso é que as condenações são as mesmas, já a sinceridade não.

Um comentário:

  1. Forte e sensato!
    As épocas e os lugares mudam, mas, as penalidades e os preconceito não.
    Bjos
    Cintia Ferreira

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