terça-feira, 27 de abril de 2010

GLORINHA

Eu sei que deveria ter te contado Glorinha. Eu sei que devia, mas a coragem fugiu, escapou como um gato que de água corre.
Acho que nunca vou perdoar essa boca velha por esconder de você a verdade de uma vida tão esquisita que se veste de luz e esconde a sujeira enganando as almas simples como a sua.

Você, desde pequena sempre foi muito bonita Glorinha, mas muito além dessa beleza que esses olhos cansados viram, sempre houve uma luz como aquela estrela que na noite de chuva aparece sozinha.
Algum misto de bondade e esperteza. Algum sonho que piscava dentro dessa pele e desse rosto de boneca, nalgum canto, esquecida.

Hoje, quando olho já não percebo o sorriso da pequena que brincava em meu quintal, que falava com as flores do jardim do vizinho. As azaléias brancas eram suas favoritas. Você lembra Glorinha? Elas algum dia te responderam menina?

Elas deviam te falar, aquilo que me esqueci, encantado com tanta vida que pulava de ti. E era como se essa vida me falasse: “Cale a boca seu velho, não atormente a menina com tanta amargura. Ela é tão bonita”.

Mas precisava ter alertado. Ter te proibido de falar com as flores e te obrigado a treinar cálculos. É isso que eles querem Glorinha, alguém que calcule bem os lucros das indústrias e dos bancos.

Devia ter te reprimido, fazer essa beleza chispar igual lobo do mato. Porque essas pessoas que aí estão te rondando são invejosas e mesquinhas, e não vão poupar trabalho pra roubar essa estrela que brotou não sei como e nem por quê.

Eu já sou velho e pobre, porque eles já levaram tudo o que eu tinha. O brilho se apagou faz tempo. Mas você ainda é tão nova e ainda tem tanto, não permita que eles tomem o que te sobra.

O que acontece é que eles têm medo Glorinha. Medo que você os apague ou ofusque. Porque sabem que não são iguais, que não possuem o mesmo jeito e nem gestos seus. Nem mesmos os sentimentos ou o mesmo futuro.

Se proteja desses ratos e se guarde com fé. Não esqueça nunca que existe alguém menina, que ouve e atende um coração como o seu. Ele se chama Respaldo.

Agora vou me deitar porque a idade está gritando. Pegue o meu remédio e, por favor, cubra os meus pés.

2 comentários:

  1. Que lindo texto Cintia! O teu estilo está parecido com as passagens de "Memórias de uma Gueixa", e tão bom quanto.
    Eu conheci uma menina que falava com as flores do jardim. Mas não eram azaléias, e nem brancas. Hoje, a menina e o jardim já não existem mais.

    Um beijo!

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  2. Todas as meninas um dia, ja falaram com as flores ou as plantas..mas depois elas sempre se esquecem de como é ou são roubadas de alguma forma..

    Valeu Thaylíssima!

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